segunda-feira, 17 de março de 2014

Rasguem o coração, não as vestes

Rasguem seu coração e não suas vestes;
Voltem agora ao Senhor seu Deus,
Porque Ele é compassivo e clemente
Lento para a cólera, rico em misericórdia.

Pouco a pouco nos acostumamos a ouvir e ver, através dos meios de comunicação, a crônica negra da sociedade contemporânea, apresentada quase como um perverso regozijo, e também nos acostumamos a tocá-la e senti-la muito perto de nós e em nossa própria carne. O drama está nas ruas, no bairro, em nossa casa e, porque não, em nosso coração. Convivemos com a violência que mata, destrói as famílias, aviva guerras e conflitos em tantos países do mundo. Convivemos com a inveja, o ódio, a calúnia, o secularismo em nosso coração. O sofrimento de inocentes e pacíficos nos fere; o desprezo aos direitos das pessoas e dos povos mais frágeis não estão distantes; o império do dinheiro com seus demoníacos efeitos como a droga, a corrupção, o tráfico de pessoas – incluindo crianças – junto com a miséria material e moral são a moeda corrente. A destruição do trabalho digno, as emigrações dolorosas e a falta de futuro também se unem a esta sinfonia.  Nossas faltas e pecados como Igreja também não ficam fora desse panorama. Os egoísmos mais íntimos, a falta dos valores éticos dentro de uma sociedade que faz metastasis nas famílias, na convivência dos bairros, povos e cidades. Isso sem falar de nossa limitação, de nossa debilidade e de nossa incapacidade para poder transformar esta lista inumerável de realidades destruidoras.

A armadilha da impotência nos leva a nos questionar: Há sentido querer mudar tudo isso? É possível fazer algo diante dessa situação? Vale a pena esforçar-se se o mundo segue sua carnavalesca dança disfarçando tudo por um momento? Desse modo, quando cai a máscara a verdade aparece e, ainda que para muitos parecesse anacrônico dizer, volta a aparecer o pecado, que fere nossa carne com toda sua força destruidora modificando os destinos do mundo e da história.

A quaresma se nos apresenta como grito de verdade e esperança certa que nos vem responder que sim, é possível viver sem máscaras e sorrisos de plástico como se nada tivesse acontecido. Sim, é possível que tudo seja novo e diferente porque Deus segue sendo “rico em bondade e misericórdia, sempre disposto a perdoar” e nos anima a começar uma e outra vez. Hoje novamente somos convidados a enveredar um caminho pascal até a Vida, caminho que inclui a cruz e a renúncia; que será incomodo, mas não estéril. Somos convidados a reconhecer que algo não vai bem a nós mesmos, na sociedade ou na Igreja. Somos convidados a mudar, a dar uma volta, a nos converter.
Neste dia são fortes os desafios do profeta Joel: Rasguem o coração e não as vestes: convertendo-se ao Senhor seu Deus. É um convite a todos, ninguém está excluído.

Rasguem o coração e não as vestes de uma penitência artificial sem garantias de futuro.

Rasguem o coração e não as vestes de um jejum formal e normativo que segue nos mantendo satisfeitos.

Rasguem o coração e não as vestes de uma oração superficial e egoísta que não chega às entranhas da própria vida para deixá-la ser tocada por Deus.

Rasguem os corações para dizer como o salmista: “nós pecamos”. “A ferida da alma é o pecado: Ó pobre ferido, reconhece teu médico! Mostra a Ele as chagas geradas por tuas culpas. E sabendo que d’Ele não se escondem nossos pensamentos secretos, faça-O ouvir o gemido de teu coração. Mova a compaixão d’Ele com tuas lágrimas, com tua insistência, importunando-O! Que Ele ouça teus suspiros, que tua dor chegue até Ele de modo que ao final, possa dizer: O Senhor perdoou teu pecado” (São Gregório Magno). Esta é a realidade de nossa condição humana. Esta é a verdade que pode aproximar-nos da autêntica reconciliação... com Deus e com os homens. Não se trata de um descrédito da autoestima, mas de penetrar na profundidade de nosso coração e assumir o comando do mistério do sofrimento e da dor que nos amarra há séculos, milhares de anos... desde sempre.

Rasguem os corações para que por essa fenda possamos olhar-nos em profundidade.

Rasguem os corações, abram seus corações, porque somente em um coração rasgado e aberto pode entrar o amor misericordioso do Pai que nos ama e nos cura.

Rasguem os corações diz o profeta, e Paulo nos exorta quase de joelhos “reconciliem-se com Deus”. Mudar o modo de viver é um sinal e fruto desse coração desembaraçado e reconciliado por um amor que supera tudo.

Este é o convite, diante de tantas feridas que doem e que podem nos levar à tentação do endurecimento: Rasguem os corações para experimentar na oração silenciosa e serena a suavidade da ternura de Deus.

Rasguem os corações para sentir esse eco de tantas vidas desgarradas e que a indiferença não nos deixe inertes.

Rasguem os corações para poder amar com o amor com o que somos amados, consolar com o consolo que somos consolados e partilhar do que recebemos.
Esse tempo litúrgico que se inicia hoje na Igreja não é só para nós, senão também para a transformação de nossa família, de nossa comunidade, de nossa Igreja, de nossa Pátria, de todo o mundo. São quarenta dias para que nos convertamos até chegarmos à mesma santidade de Deus; convertamo-nos em colaboradores que recebem a graça e a possibilidade de reconstruir a vida humana para que todo homem experimente a salvação que Cristo nos deu com sua morte e ressurreição.
Junto com a oração e a penitência, como sinal de nossa fé na força da Páscoa que transforma tudo, também nos dispomos a iniciar, como nos outros anos, nosso “Gesto Quaresmal Solidário”. Como Igreja em Buenos Aires que marcha para a Páscoa e que crê que o Reino de Deus é possível, é preciso que nossos corações desgarrados e desejosos de conversão para assim, por amor, fazer brotar a graça no gesto eficaz que alivie a dor de tantos irmãos que caminham conosco. “Nenhum ato de virtude pode ser grande se dele não se segue também um benefício para os outros... Desse modo, por mais que jejues durante o dia, por mais que durmas no chão, e comas cinza, e suspires continuamente, se não fazes o bem a outros, não fazes nada grande” (São João Crisóstomo).

Esse Ano da Fé que estamos vivenciando é também a oportunidade que Deus nos dá para crescer e amadurecer no encontro com o Senhor que se faz visível no rosto sofrido de tantas crianças sem futuro, nas mãos trêmulas dos anciãos esquecidos e nos joelhos vacilantes de tantas famílias que seguem colocando-se na vida sem saber o que os espera.

Lhes desejos uma santa Quaresma, penitencial e fecunda Quaresma e, por favor, lhes peço que rezem por mim. Que Jesus abençoe-os e que a Virgem os guarde.

Paternalmente

Card. Jorge Mario Bergoglio s.j.
Papa Francisco

Quarta feira de cinzas.
Buenos Aires, 13 de fevereiro de 2013.

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